Kiriri: “nós somos gente como todo mundo”

Quinta-feira, 11 de maio de 2017. Fim de uma tarde fria de outono, o sol já se põe e entre os vales e as montanhas da zona rural de Caldas, atrás da poeira da estrada, um caminho se abre. É a entrada do antigo sítio Rio Verde. Agora, sobre a porteira aberta existe uma faixa que diz: Terra ocupada pelos índios Kiriri. Vindos da cidade de Muquém do São Francisco, no oeste da Bahia, os indígenas da etnia Kiriri chegaram a Caldas em outubro de 2016.

Em um primeiro momento, eles alugaram uma chácara na zona rural do município e desde março deste ano vivem em uma área ocupada no bairro Rio Verde, onde deram início à construção de uma aldeia. As terras ocupadas pertencem ao Estado de Minas e o processo de documentação que garantirá sua posse da terra à população indígena Kiriri já encontra-se em negociação junto à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao governo do Estado.

O cacique da tribo, Adenilson de França Santos, já havia morado em Caldas no ano de 2003, na aldeia Xucuru Kariri. E, assim como muitos turistas e moradores, se encantou com as belezas naturais, a hospitalidade caldense, a água em abundância e o clima da cidade. Ao saber das terras devolutas na região do Rio Verde, o cacique retornou à Bahia, reuniu seu grupo e juntos partiram rumo ao Sul de Minas carregando sonhos, arcos, flechas, cocares e celulares.

Além da disponibilidade da área rural para demarcação de terra indígena e do encantamento com a cidade de Caldas, outros fatores trouxeram os Kiriri para o município. Segundo Adenilson, a área demarcada que possuíam na Bahia era insuficiente para comportar os 280 moradores e atender as demandas e necessidades produtivas de uma aldeia. Devido às fortes secas que assolam o interior baiano, os indígenas frequentemente perdiam plantações inteiras de milho ou feijão, e, na busca por trabalho fora da aldeia, geralmente encontravam exploração, má remuneração e até mesmo submissão a condições de trabalho análogas à escravidão. Nas palavras do cacique, “[…] só quem já viveu no sertão sabe das dificuldades que enfrentamos por lá. Tem falta de chuva e muito calor. Chega um ponto que a gente desgosta do lugar e se desespera.”

A aldeia Kiriri Rio Verde abriga hoje 26 pessoas, mas já aguarda a chegada de cerca de 30 indígenas nos próximos meses. Entre os planos do cacique estão a construção de uma oca para celebração dos rituais da cultura e religiosidade indígena, o cultivo de alimentos para a subsistência da tribo e o plantio de árvores na área próxima ao Rio Verde. Além da preocupação com a questão ambiental ser algo comum nas tradições indígenas, no caso dos Kiriri ela também se expressa a partir da vivência da tribo, que assistiu ao declínio do Rio São Francisco. “O São Francisco tá morrendo. O povo desmata tudo e a água seca. A gente vivia muito da pesca mas os peixes tão acabando. A gente que é bicho homem acaba com tudo […]”, afirma um dos moradores da aldeia.

Nos dois meses de ocupação da terra, os Kiriri já construíram nove casas de taipa (ou pau a pique, como são conhecidas na região) mas a intenção é construir 16. Enquanto esperam os tempos próprios para o plantio e cultivo nas terras da aldeia, eles têm realizado trabalhos na zona rural da cidade, o que lhes garante alguma renda para manutenção das necessidades mais básicas da tribo. Os adolescentes e crianças já estão matriculados e frequentando as escolas da cidade.

Alguns moradores do município, preocupados com o fato dos indígenas terem chegado do nordeste despreparados para o frio sul mineiro dessa época do ano, se mobilizaram para arrecadar cobertores e agasalhos para a tribo. Um dos padres da cidade também prestou assessoria aos Kiriri na mobilização para que recebessem a vacinação contra a gripe. A população indígena é considerada grupo de risco pelo Ministério da Saúde e deve ser vacinada com prioridade. No entanto, segundo os moradores da aldeia, foi preciso forte mobilização junto ao poder público para que o direito à vacinação lhes fosse garantido.

Ao cair da noite, no final de nossa visita, alguns moradores se aqueciam em torno de uma fogueira, compartilhavam um café e celebravam a doação de cano que acabava de chegar e que possibilitaria a condução da água de uma mina até os arredores das casas. Ao lado da fogueira podia-se ver um garotinho reflexivo e compenetrado, trabalhando um bambu com uma faca. Também era possível notar uma senhora animada em uma conversa pelo celular.

Os Kiriri não são idênticos aos índios que moram em nossas cabeças, tampouco correspondem fielmente às inventividades e excentricidades que atribuímos a eles. Para entender os povos indígenas na contemporaneidade precisamos ir muito além das nossas pré-noções, preconceitos e idealizações. Como afirmou o cacique Adenilson, “os Kiriri não são índio inventado, os Kiriri são índio de origem, de história, se esquecermos nossas tradições, esquecemos tudo na vida”. No entanto, como disse a professora Carlilza Francisca Ramos, integrante da tribo, “nós somos gente como todo mundo […] somos capazes de aprender e trabalhar em qualquer área, sabemos fazer o que todo mundo faz, somos cidadãos e possuímos direitos”

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